Liturgia:
Momento Histórico da Salvação. Do normativo rubrical ao teológico litúrgico.
Pe. Joaquim Cavalcante
Considerando
que o movimento litúrgico deu um a grande contribuição para o surgimento da
Enciclica Mediator Dei, e que esta deu grande substrato à Sacrosanctum Concilium, é justo mencionar alguns passos
e avanços que precederam o Concilio Vaticano II.
Depois da
Mediator Dei e antes da Sacarosactum Concilium
Podemos
dizer que houve uma primavera litúrgica marcada por algumas mudanças de caráter
normativo pastoral. Tais como:
a) A restauração da vigília pascal, em 1951.
b) A
introdução da missa vespertina e nova disciplina para o jejum eucarístico, em
1953.
c) A
publicação do decreto de simplificação das rubricas do Missal e do Breviário,
em 1955.
d) A
publicação do o Novo Rito da Semana santa, em 1955 e a instrução sobre a música
na liturgia.
A atenção e
os encaminhamentos dados Pelo Papa Pio XII favoreceram o desenvolvimento da
teologia litúrgica do Concílio Vaticano II.
A partir do
horizonte pastoral das mudanças que foram surgindo vai sendo construída a
teologia da Sacrosanctum Concilium. É
uma teologia centrada na hermenêutica litúrgico-pastoral.
Com o passar
do tempo, percebe-se hoje, uma teologia mais litúrgica e uma liturgia mais
teológica. A norma, por demais necessárias, não deve aparecer desprovidas ou
fora desses dois sentidos.
O que tem aparecido nesses
últimos anos? Duas tendências:
A primeira é marcada pelo o domínio
do subjetivismo litúrgico, isto é, cada um faz o que achar mais conveniente.
Ora, o texto do Concilio é
claro e enxuto, apresenta o essencial, mas na liturgia foi entrando certo
subjetivismo sem fundamento litúrgico e teológico que deforma o espírito da Sacrosanctum Concilium.
A segunda tendência é o
domínio de um rigorismo normativo rubricista. Essa tendência muitas vezes aparece
carente de sensibilidade pastoral e teológica.
Mais do que nunca, devemos deixar ressoar a
beleza e grandeza da liturgia. A liturgia é uma fonte preciosa. Dela exala a
fragrância da Palavra do Senhor.
A liturgia é a salvação em
ação gerundial. Todo o mistério da liturgia transpira a salvação. A Palavra e o
espaço litúrgico com o odor do incenso, o som das vozes e da harmonia da música,
tudo isso acompanhado dos gestos e dos símbolos refigura a presença do Logos que
vai se dando benevolamente como outrora se deu na plenitude dos tempos.
Liturgia é essencialmente
alteridade que interpela e inclui na mais absoluta gratuidade do amor que se dá
no mistério do rito que evidencia a economia divina no hoje da história. Por
isso a liturgia é compreendida como momento histórico da salvação.
A liturgia é mistério fontal.
A fonte é a dilatação permanente da gratuidade. A fonte não sabe de si, ela se
dá no silêncio com a pureza que ela brota por entre as fendas de uma rocha ou
do ventre da terra. Por isso a liturgia é sempre uma grandeza de fundo e uma
beleza fascinante e transparente.
A liturgia é momento histórico da salvação
porque é tempo e lugar privilegiados onde a comunhão é experimentada, Deus é
glorificado e o gênero humano é santificado. A liturgia é ação integradora dos
mistérios da vida e da fé.
Nada na liturgia pode transcorrer separado
ou paralelo à vida e à fé. A essência da liturgia é expressar e construir a comunhão.
Por si mesmo, ela refuta qualquer tendência de privatização intimista ou
subjetivismo dispersivo.
Na história nossa de cada dia se dá a
história concreta da salvação. Isso pede seriedade e perfeita integração entre
nosso modo de viver e nosso modo de celebrar.
(Lex
credendi e vivendi = lex celebrandi).
A liturgia é momento histórico
da salvação porque toda história é impregnada da salvação em cada ação
litúrgica.
A Santíssima Trindade e a
Igreja operam na liturgia atualizando a salvação no mundo. Isso faz a liturgia,
ao longo da história da salvação, ser compreendida como evento de salvação.
Celebrar é presentificar a
salvação, é atualizar o encontro com Deus e com os irmãos. Para isso urge uma
teologia litúrgica estribada no espírito da Sacrosactum
Concilium que ajude a superar o rubricismo que não favorece a participação
consciente, ativa e frutuosa. Porém, a Sacrossanctum
Concilium deve ser lida e aplicada à luz das demais constituições conciliares:
(LG, GS, DV).
A celebração litúrgica é o
ponto de confluência da existência humana com a presença e a essência divina. Não
se começa ser cristão por um encontro ético ou uma grande ideia e sim por
fascinação – por uma decisão pessoal (Documento de Aparecida). Toda
existência é interpelada pela beleza do mistério divino.
Convém investir na formação
litúrgica dos futuros ministros ordenados e de todos o povo de Deus. Devemos celebrar
bem e exercer bem nossa função litúrgica, porque somos um povo sacerdotal.
A liturgia tem que encantar,
mas quem não se encanta pelo que faz não ama o que faz. A participação
litúrgica não pode e nem deve ser confundida com subjetividade arbitrária e
diversão religiosa de mau gosto. Isso seria o cúmulo da involução litúrgica.
Infelizmente, muitos os
católicos não participam da Eucaristia dominical, não por falta de presbíteros,
muitas vezes por falta de boa vontade.
Por isso muitos são vulneráveis na fé.
Dizia Dom Armando no Seminário
Nacional de Liturgia: “sem a participação na Eucaristia dominical e preceitual
não há um discípulo missionário autêntico”. Alguns querem a celebração
ritualista e privada, mas o Concilio ensina que ela deve ser inteligível e para
todos.
A liturgia
como momento histórico da salvação é: mistério celebrado, páscoa atualizada no
rito da fé professada em ação celebrativa e vivencial.
O
mistério pascal torna presente o mistério da fé e o escatológico torna se
presente no temporal. Assim, toda a celebração litúrgica deve ser compreendida
como a diafania ou desvelamento do mistério. Mistério que na Igreja com seus
Sacramentos é o prolongamento da presença de Cristo ressuscitado na história. Todo
o agir de Cristo na história, antes da sua morte, passou para os sacramentos.
(Leão Magno).
Os
sacramentos são constitutivos da fé da Igreja. Por isso a liturgia não é outra
coisa que a profissão sonora da fé. Toda ação litúrgico-sacramental é obra da
Trindade e da Igreja. Por essa razão, a maior adoração é deixar se embebecer da
celebração na sua divina e singela beleza.
Considerações finais:
O Prof. Andrea Grillo disse em uma das suas
conferências durante o Seminário Nacional em Itaici, que há quatro coisas que não podemos esquecer e, como sabemos, recordar é
manter as coisas no topo da memória.
1. A liturgia é ação ritual não somente
exercício de um direito ou de um dever.
Portanto, não
pode ser reduzida a um mero controle “para
evitar abusos que devem ser absolutamente evitados”. A liturgia é a o ícone
da gratuidade do mistério salvífico que se dá na ação ritual. Como ação ritual
a liturgia é a sinfonia que narra, glorifica e exalta os feitos de Deus no
mundo e santifica as pessoas. (nesse sentido, a celebração eucarística é, por
excelência, rito de santificação, porque é rito que transforma).
2. A liturgia experiência
de comunhão não somente experiência pública ou privada.
É preciso resgatar os fundamentos da teologia
litúrgica para se chegar à compreensão da liturgia como "experiência de comunhão".
Deve-se priorizar a celebração comunitária (SC, 27). Não basta fazer da
liturgia uma ação pública, é preciso que ela favoreça uma profunda experiência
de comunhão entre os que dela participam.
3. A liturgia é
tempo festivo/doado a ser vivido na dinâmica da gratuidade recíproca.
Tempo festivo e doado não significa tempo livre ou tempo dedicado ao fazer. A gratuidade da
liturgia pede abertura e generosidade para dar e receber. A natureza da
gratuidade vai além do direito e do dever. A liturgia é tempo doado porque é a
festa da fé. É Tempo festivo e “tempo festivo é transgressão do
tempo homogêneo e irreversível- que o relógio exalta de maneira suspeita- é
representação da origem graciosa e gratuita do tempo” (A.Grillo).
4.
A liturgia é-"fonte
e cume” não só meio ou função.
Não podemos fazer desse
princípio um mero refrão de uma retórica insuportável. “Afirmar que a liturgia é cume e fonte de
toda a ação da Igreja, significa que a liturgia não é "mídia"! Que as
razões de sua simbólica e de sua ritualidade, não estão a serviço de outra
coisa e sim coincidem com a comunhão com Deus, não na sua totalidade
histórica e escatológica, mas, na sua antecipação e em sua plenitude, em seu
início e em seu fim” (A.Grillo).
Creio que esses quatro pontos
nos remetem para uma hermenêutica litúrgica infinitamente maior que os
parâmetros limitados de uma compreensão do sentido da liturgia como direito e
dever. Liturgia é dom para ser celebrado
comunitariamente como a festa escatológica antecipada no tempo. Pois toda
liturgia terrena é antegozo da liturgia celeste.
Que as celebrações dos 50 anos
do Concílio Vaticano II potencie a fé e a práxis das nossas comunidades para
que nossas celebrações expressem e atualizem o dom da salvação que o Pai nos
oferece, por Cristo, na ação fecunda do Espírito Santo que, com a Igreja e na
Igreja, é o artífice da liturgia. Amém!
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