A FÉ
CELEBRADA NA LITURGIA
Pe. Joaquim Cavalcante
Diocese de Itumbiara
O Senhor confiou à sua
Igreja a tríplice responsabilidade de guardar o Depósito da Fé, celebrar a fé e
a missão de anunciar a toda criatura a Boa Nova da salvação (Mt 28,19).
Essa tríplice e grave
responsabilidade da Igreja nos coloca diante de três considerações regidas por
três verbos, a saber: guardar, celebrar
e anunciar.
Gostaria que esta minha
intervenção, embora singela e despretensiosa, somada ao contributo relevante
dos que me precederam e dos que falarão depois de mim, tudo somado, possa
enriquecer o debate teológico e atingir as expectativas desta semana acadêmica.
ð Primeira consideração, guardar:
Guardar o Depósito da Fé é acolhera
revelação divina em sua totalidade. À Igreja é confiada essa grave
responsabilidade guardar para celebrar e anunciar. É nesse sentido que podemos
compreender o que diz a Constituição sobre a liturgia: “a liturgia é cume e
fonte” (SC,10). Por que é cume? Porque tudo o que a Igreja crê, professa e
anuncia converge para a liturgia.
E por que é fonte? Porque
toda a força para o agir da Igreja, no
cumprimento do mandato do Senhor, emana da liturgia. Nesse sentido, não se pode
compreender a Igreja sem a liturgia nem a liturgia sem a Igreja.
A Igreja guarda o tesouro da
fé não como quem o esconde (como fez aquele operário que mereceu a reprovação
do Senhor Lc 19,20-24), mas como quem tem a responsabilidade, primeira, de
oferecer esse tesouro ao mundo sem alterar ou profanar a essência do conteúdo que
lhe foi confiado.
Guardar o tesouro da fé não
significa soterrá-lo ou colocá-lo dentro de um baú trancado a sete chaves. O tesouro
da fé é confiado à Igreja (faço questão de usar o verbo ser no presente do
indicativo), é confiado para ser celebrado e anunciado.
Na economia litúrgica, a
Igreja celebra e atualiza o mistério revelacional, cujo ponto “alfa” é a Anunciação a Maria que inaugura
a plenitude dos tempos (Gl 4,4). E, pode-se dizer que, o ponto “ômega” deste mistério celebrado pela
Igreja é a páscoa de Cristo.
É fascinante o mistério que
celebramos inaugurado com a anunciação a Maria. O Espírito Santo, que é o
Senhor da vida, “fecunda divinamente o
ventre de Maria fazendo que ela conceba o Filho eterno do Pai em uma humanidade
proveniente da sua” (CIC, 485).
Sim, o Verbo eterno se fez
pessoa no ventre de uma filha de Israel, Maria de Nazaré. Diz o Apóstolo na
Carta aos Gálatas: “Quando chegou a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho nascido de uma mulher para remir os
que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial. E porque sois
filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama
Abba, Pai”! (Gl 4,6).
Por conseguinte, o mistério
da anunciação e encarnação desvela e dá rosto ao mistério tremendum o qual, no mistério da liturgia, lugar e espaço
convivial, o mistério que outrora parecia inacessível torna-se palpável e
fascinante, saboroso e inebriante. Celebrar é conviver com o mistério.
ð Segunda consideração, celebrar:
Podemos perguntar: o que
celebramos? - Celebramos o mistério da fé que é o mistério de Deus em si mesmo,
Pai, Filho e Espírito Santo. Celebramos a Trindade que nos salvou. Celebrando
esse mistério, a Igreja torna célebre o evento pascal e o atualiza como momento
histórico da salvação. O mistério pascal de Cristo é a obra prima da Trindade. Celebrando
a Igreja atualiza a obra da redenção humana e, do nascer ao por sol, cumpre “a
perfeita glorificação de Deus”.
A teologia litúrgica da Constituição
sobre a Sagrada Liturgia está centrada sobre a história da salvação e a celebração
litúrgico-sacramental vem compreendida como momento histórico da salvação.
Diz o Concílio: “Esta obra da redenção humana e da
perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhas operadas no
povo do Antigo Testamento, completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo
mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa
ascensão. Por este mistério, Cristo, ‘morrendo, destruiu a nossa morte e
ressuscitando, recuperou a nossa vida’ (Prefácio da Páscoa). Pois, do lado de
Cristo agonizante na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja.
Portanto, assim como Cristo foi enviado pelo Pai, assim também ele enviou os
apóstolos, cheios do Espírito Santo, não
só para pregarem o evangelho a toda criatura, (…) mas ainda para levarem a
efeito o que anunciavam: a obra da salvação através do sacrifício e dos
sacramentos, sobre os quais gira toda a vida litúrgica. (…) Desde então a
Igreja jamais deixou de reunir-se para celebrar o mistério pascal: lendo ‘tudo
quanto a ele se referia em todas as Escrituras’ (Lc 24,27), celebrando a
eucaristia, na qual se torna presente a vitória e o triunfo de sua morte (Conc.
de Trento) e, ao mesmo tempo, dando graças ‘a Deus pelo dom inefável’ (2Cor
9,15) em Jesus Cristo, ‘para louvor de sua glória’ (Ef 1,12), pela força do,
Espírito Santo” (SC 5s).
Como estamos vendo, a fé celebrada
na liturgia é a fé de toda a economia da divina revelação, é a fé dos
Patriarcas e profetas, a fé bíblica e de toda a Tradição, é a fé dos Santos
Padres, a fé sistematizada no dogma e nos Sagrados Concílios.
A fé celebrada no esplendor da
singeleza da ritualidade litúrgica é a fé dos pastores e doutores, dos santos e
mártires, isto é, a fé daqueles e daquelas que nos precederam no Batismo e que
tiveram suas festes lavadas no sangue do Cordeiro (Ap 7,14).
A fé celebrada na liturgia
no tempo da Igreja é a fé de Agostinho de Hipona e Ambrósio de Milão, de
Crisóstomo de Constantinópole e Policarpode Esmína, é a fé de Rosa de Lima, de
Oscar de El Salvador, Adelaide, Doroth, de Luciano Mendes e de Helder Câmara,
Chico Mendes e Ezequiel Ramin, é a fé de Madre Teresa de Calcutá e de Madre
Dulce da Bahia, a fé de Vieira, Anchieta e de frei Galvão.
Alguns desses nomes, muitos
de nós os conhecemos,são testemunhas de primeira grandeza, embora pouco
evocados, alguns até banidos da memória eclesial do momento.
A fé que celebramos, meus
amigos, é a fé confessada e celebrada por Pedro, primeiro Papa, é a fé de todos
os seus sucessores até Francisco, florão da América, fagulha de esperança e
inspiração para todos nós.
Celebramos a fé porque a liturgia
é a confissão ritualizada da fé e a fé celebrada é a fé dos Apóstolos, é a fé
trinitária confessada pelo catecúmeno antes da tríplice imersão. Celebramos a
fé que a Igreja transmite à criança ou ao adulto no simbolismo daquele rito
absurdamente singelo e profundamente eloquente, uma vela é acesa na luz do
Círio Pascal, em seguida, é entregue ao neófito dizendo: “recebe a luz de Cristo”. Por conseguinte, a fé celebrada na
liturgia é a fé da Igreja.
ð Terceira consideração, anunciar:
O evento celebrativo é, por
si, um anúncio suave e retumbante. A natureza e a estrutura da celebração
litúrgica é essencialmente marcada pela dimensão escatológica. Na liturgia não
só anunciamos a morte e a ressurreição do Senhor, mas esperamos ardentemente a
sua segunda vinda.
Depois da narrativa da instituição
da Eucaristia, vem um anúncio que irrompe aquele silêncio próprio da
contemplação e diz: “eis o mistério da fé”. Ao que todos respondem com a mais
legítima aclamação memorial: “Anunciamos, Senhor a vossa morte, proclamamos a
vossa ressurreição, vinde Senhor Jesus”! Maranatha!
Ora, esta aclamação memorial
é o grito de esperança que expressa, também, a certeza da fé vivida e celebrada
no hoje-kairós da liturgia e da Igreja. Pelo mistério da liturgia, a Igreja
afirma, proclama e anuncia a presença do ressuscitado.
Porém, ao mesmo tempo em que
diz: “está no meio de nós”, ela clama por sua presença, dizendo: “vinde,
Senhor”! sim, está presente pela mediação dos sinais e virá na plenitude da sua glória “para
julgar os vivos e os mortos.”
A espera da volta imediata
do Senhor cultivada pela comunidade nascente é celebrada pela Igreja, todos os
dias, até a consumação dos séculos.
Como vimos, a liturgia é
perene anúncio escatológico na história e esse anúncio faz de cada celebração
momento histórico da salvação. A liturgia não pode ser reduzida a um evento
para celebrar as lutas e as vitórias históricas, ela é evento salvífico que
impregna o mundo e a história do mistério da páscoa de Cristo.
A Eucaristia, mistério
central da vida da Igreja, presentifica e anuncia o banquete da Jerusalém
celeste. Celebrando, pregustamos e participamos da liturgia do céu. Diz um
texto do tropário de quinta-feira da liturgia de São Basílio: “Hoje, ó Filho de Deus toma-me como comensal
da tua mística mesa, não darei o mistério aos teus inimigos, não te darei o
beijo de judas, mas como o ladrão te confessarei, recorda te de mim, ó Senhor,
quando estiveres no teu reino” (texto 68).
Para o céu caminhamos como
peregrinos na esperança de chegar onde o Cordeiro está sentado à direita do Pai
(SC, 8). Toda a ação liturgia é permeada da presença do eterno mesmo inserida
no transitório e temporal.
No Evangelho, encontramos
parábolas falando sobre o reino como uma celebração que pede uma certa
dignidade no vestir, é uma festa de comunhão e alegria. Nesse sentido, a
primeira destinatária desse anúncio é a comunidade eclesial chamada a vivera
comunhão eterna na presença do ressuscitado.
Depois dessas palavras,
gostaria de pontuar, em caráter de considerações finais, três aspectos que
podem ser compreendidos, também, como provocações que ampliam o debate atual:
Primeiro
aspecto, o anuncio do silêncio litúrgico. Guardar o silêncio. O silêncio
é a palavra do mistério, é a teofania do mistério. O mistério é mais que parte
integrante da economia ritual da celebração. O mistério é o que a liturgia
celebra. Por isso é preciso ouvir o silêncio, linguagem do inefável que nos
contagia. O mistério é o inefável no superlativo absoluto.
O indizível pede atitude.
Por isso, diante dele, a inteligência humana se rende, os joelhos se dobram e o
coração dispara. E não poderia ser outra nossa atitude. O silêncio nos exercita
para o gozo da parusia que a eternidade em sua plenitude.
O silêncio evoca o dinamismo
da comunhão plena a que toda existência clama e é vocacionada. O silêncio
litúrgico anuncia o estado da existência efêmera irrompida pela suavidade do
eterno.
Na oração silenciosa, a fé é alimentada para
audácia da martiria. Para mim, a sinfonia mais bela da fé celebrada é o
silêncio. Sinto que as notas da partitura do silêncio são compostas pelo
Espírito Santo. Logo, o silêncio é a sinfonia da fé e do Espírito. E segundo
Adélia Prado, o silêncio faz da missa o evento “mais absurdamente poético”.
Portanto, é um ato de fé não deixar o silêncio como refém dos ruídos e das
estridências que invadem a celebração.
Segundo
aspecto, celebrar a fé deixando se contagiar pela conversão de linguagem e
conversão de hermenêutica litúrgica.. sabemos que a ontologia do
mistério é a gratuidade absoluta. Se “a fé ama saber”, o mistério sabe e ama se
desvelar na poesia da gratuidade. A fé celebrada pede a conversão de
hermenêutica litúrgica e de linguagem litúrgica. Às vezes para descrever o ato,
negamos o fato. Por exemplo: a expressão, “comunhão sob as duas espécies”.
Existe comunhão sob? A linguística, a gramática e a filosofia da linguagem
poderiam ajudar a teologia litúrgica. Comunhão sob o corpo, diz mais que
comunhão ao corpo? É contagiante a linguagem simbólica da ritualidade
litúrgica. Ela toca o universo antropológico com a força, por exemplo, do único
cálice, do qual toda a família eclesial bebe do sangue do Cordeiro.
Terceiro
aspecto: Anunciar a fé na perspectivada Tradição e do vigor profético. Se
quem celebra a liturgia é um sujeito eclesial e se por sujeito eclesial
entendemos a Igreja da Trindade, logo a liturgia é ação conjunta da Trindade e
da Igreja. Isto é, o mistério tri-relacional se dá na ação litúrgica eclesial.
Quando digo mistério, penso no indefinidamente pressentido e me reporto para o
axioma da teologia clássica Lex Credenti, ou seja, a norma de
crer. Celebrar é ritualizar a fé e isso não deixa de ser um sinal profético no
meio da indiferença.
A Lex Orandi é a
fé compreendida em ação. É a fé celebrada na liturgia e vivida no exercício da
caridade, da diaconia, da martiria e da coinonia.
A isso, pode-se
chamar, também, de Lex Vivendi, ou seja, a norma de viver. Entendo que a vida do
fiel deve ser sinal sacramental da sacerdotalidade de Cristo e de todo seu
agir. A fé celebrada suscita no fiel a mística trinitária refigurada nas
atitudes e gestos éticos de cada batizado. A vivência cristã é entendida como a
sintonia entre crer, orar, e agir. Por isso devemos guardar o tesouro que
recebemos, devemos celebrar a fé que professamos e devemos anunciar a morte, a
ressurreição e a vinda gloriosa do Senhor. Afinal, crer é viver e anunciar o
que se professa e o que se celebra.